A cruz

A cruz, como todos sabem, era um instrumento de morte usado no império romano. Entretanto, depois de Jesus e por causa de Jesus e seus seguidores, ela se tornou um símbolo do movimento cristão. Símbolo que traduz resistência, vitória e vida dentro da lógica pascal da ressurreição do Senhor. A partir dessa lógica e perspectiva ela se tornou um elemento chave para expressar o seguimento a Jesus, e vivencia da fé cristã, séculos afora.

A cruz não é só símbolo, ela traduz intrinsecamente a experiência de morte-vida enquanto redenção do homem e da mulher na lógica do novo, do perene e eterno. É nos braços da cruz que se deu a redenção do gênero humano, da história e do universo. Por isso, mas que um instrumento que serve à moda e superstições e ideologias diversas, ela deve está presente no cotidiano da vida para nos recordar a todos o grande amor de Deus; e que a história tem um fim, um fim escatológico, onde será transfigurada, segundo o testemunho da fé cristã.

Mas, enquanto exprimindo essas realidades assim condensadas pela teologia cristã, no imaginário popular ela tem outra conotação: o do sofrimento redentor. O povo cristão nas camadas populares associa seus sofrimentos e descompassos da vida ao destino. E a cruz exprime seu sofrimento não como masoquismo e para o masoquismo, mas como redenção. Essa redenção se dá através da esperança que os faz crer que em suas vidas tudo um dia será melhor. E esse ‘será melhor’ é canalizado e traduzido pela cruz e o que ela representa de vida: a ressurreição.

Assim, seu sofrimento e sua esperança/vida é associada ao Cristo crucificado, e como ele, com ele, e por ele, se sentem crucificados e ressuscitados, mesmo que ambiguamente a realidade do sofrimento não o mostre assim, daí porque a fé. Ela é a crença/força que traduz principalmente através da cruz a convicção de que a vida ainda há de lhes conceder o melhor. E o melhor aqui é o contrário da situação em que se encontram. Daí porque a cruz se torna por assim dizer, um paradoxo contraditório de morte-vida, de vida-morte.

Dessa forma, usam a cruz devotamente como sinal de seu sofrimento e como certeza de vida melhor, vida que Jesus o crucificado vivente no-lo dá.

Em tempos de ditadura e pseudo-democracia latino-americana a cruz se tornou um símbolo muito forte do engajamento cristão. Tanto que, nos meios dos teóricos e lideranças da base havia uma reflexão onde se questionava “como pregar a cruz de Cristo num mundo de crucificados” enfatizando com isso duas realidades distintas, que obviamente eram instrissicamente assumidas de forma ontológica e redentora, como já o fiz notar nessas linhas: o sofrimento do povo e a boa nova da libertação: a vida.

Da compaixão pelo povo e assumindo o seu sofrimento, dentro de uma perspectiva de abertura do Concílio Vaticano II, muitas lideranças cristãs religiosos e religiosas foram viver com e como o povo, embrenhado em suas vidas, como fermento na massa. Dessa forma de engajamento nasceu e se fez brotar uma viva esperança que resultou num grande movimento democrático de libertação juntamente com outras forças populares de libertação como nunca visto na história, e que, como resultado foi lançado às bases para as democracias que hoje vemos por aqui. Durante todo esse processo, a cruz inconscientemente esteve aí presente, de certo, por vezes lembrada e por vezes nem notada, mas que bem traduzia toda essa realidade.

E o uso da cruz, no qual tanto implicitamente como explicitamente nos remete ao Senhor, o crucificado vivente, sempre foi para o povo um sinal devoto de seguimento a Jesus e testemunha da fé católica que abraçaram. Que falem por si, os atos litúrgicos da sexta-feira santa nas igrejas do Brasil, onde o povo celebrar com formidável densidade todo o significado do sofrimento e da vida, condensados no paradoxal símbolo que por si só traduz todo significado do que acreditam fervorosamente.

Pois, bem, a cruz, esse símbolo tão complexo e ao mesmo tempo tão simples que nos dias atuais é usado como simples objeto pela moda, dependurada ora sobre os ombros, ora nas orelhas ou nos dedos de jovens, homens e mulheres, com vulgaridade popular ou com seriedade de quem tem devoção ou compromisso, esse símbolo cristão tem muito e fala muito pela sua história e de quem por ela abraçou o intocável pelo homem, me foi motivo dessa reflexão.

E essa reflexão foi motivada pelo que vi nesses dias, quando de uma visita a uma comunidade religiosa e percebi a cruz, uma cruz que me chamou a atenção pelo conteúdo que nela estava impresso: era uma cruz talhada em madeira, com cenas pitorescas da vida cotidiana e cultural do povo. Havia o trabalhador/a, a feira, os afazeres domésticos, o homem do campo e da cidade… A mim sua mensagem apareceu muito clara: pelo ato redentor do crucificado tudo e todos foram redimidos, e a caduquice da vida encontrou seu sentido mais profundo no crucificado vivente: a vida.

Essa cruz tinha um “quê” de vocacional incomodante e um apelo evangélico gritante: Só há um caminho possível de seguimento e santidade no encalço do Crucificado Vivente, assumir a vida, a luta, as dores, a alegria e os sonhos do Povo. E para se chegar a isso, entendo eu, se assim fiz a leitura correta de interpretação, é a inserção na vida dessa gente, não como mestre, doutores, mas como servidores aprendizes. Desse modo compreendi que, se todos os passantes olhassem para a cruz de mente e coração abertos, pudesse iluminado por essa graça, alcançar a mensagem que ela nos inspira a escutar: A boa nova de salvação.

Talvez não chegasse a tanto quem a idealizou, mas certamente, fez uma experiência única do seguimento e da compreensão de todo o significado da cruz e o traduziu dessa forma, nesse objeto, que sendo simples e não dizendo nada, diga tudo, tudo aquilo pelo qual o mundo, as pessoas, o sistema e a sociedade moderna tenta ridicularizar e calar, relegando ao sem sentido, ao absurdo e ao vazio aquilo que para muitos e para a fé cristã é essencial: O Crucificado Vivente, Senhor da História, Redentor. Ele está no meio de nós! Ele assumiu nossas dores e nos mostrou a vida! Bendito sejas.

Sobre Sebastião Catequista 90 Artigos
Olá! Sou Sebastião Catequista. Sou educador popular e narrador dos conteúdos bíblicos. Habito a Igreja Católica e me identifico como tal, meu lugar de fala é a partir das Comunidades Eclesiais, Pastorais e Movimentos Populares. Faço parte do CEBI (Centro de Estudos Bíblicos) da Região Nordeste, Estado de Pernambuco. Atuo como Agente de Pastoral em diversas atividades eclesial. Blogueiro, assessor, palestrante, criador de conteúdos, sou católico de fronteiras: isto é, sou Ecumênico, de profundo Diálogo inter-religioso com outras Tradições Religiosas cristãs e não cristãs. Adoro ler, curtir a natureza, passeios, fotos, músicas e bons filmes. Sinto-me encantado com a Vida e agradecido. Sou um contemplativo nato. Adoro o mundo da Teologia e da Ciência da Religião. Aqui é o lugar onde extravaso as palavras e dou evasão aos pensamentos. Ter sua visita e apreciação de meus textos é uma alegria, um partilhar da vida nessa cativante jornada do dia a dia que é está vivo e caminhar rumo ao Mistério fascinante da Existência. Grato! Seja bem-vindo/a!